5 - O Sentido dos Milagres
O milagre, do latim mirum/mirari, que significa “maravilha/maravilhar-se”, indica, lato sensu, um ato de potência (em grego
dýnamis), ou seja, um prodígio, a
coisa extraordinária, ou “monstruosa”: aquilo que está “fora da ordem”, fora da
natureza (em grego téras),com a qual
Deus dá um sinal (em grego sēméion;
σημειον) àqueles que, em decorrência, ficam assombrados, pasmados, estupefatos
(em grego thaumázō; θαυμάζω). Todos
estes termos exprimem aspectos de uma mesma realidade a que chamamos milagre.
Eles exprimem, em suma: a natureza extraordinária do que é considerado um
milagre; a sua origem (no sentido da potência daquele que o opera); o seu valor
de sinal; e seu efeito surpreendente.
Encontramos, também, o sentido radical de palavras portuguesas muito
populares como “admirável” e “maravilhoso”, sem darmo-nos conta, contudo, que
quando as usamos estamos nos referindo a algo que é “milagroso”, em último
senso.
Milagre é possível?
O saudoso Dom
Estêvão Bettencourt procura dar resposta a esta pergunta numa de suas
memoráveis lições. A pergunta é sempre atual. Em fato, “a possibilidade do
milagre é contestada hoje em dia em nome de correntes da ciência, da filosofia
e até da Teologia; alegam que não conhecemos suficientemente as forças e as
leis da natureza para poder dizer que determinado fenômeno supera as leis da
natureza e só se explica pela intervenção de Deus”[1],
dizia ele. E ponderava:
...o milagre não
consiste essencialmente em ser portento absolutamente inexplicável pela
ciência; mas, antes do mais, o milagre é um sinal de Deus para os homens, que
Lhe pedem uma expressão de seu amor ou sua bondade. Para que haja tal sinal, basta
que o fato seja totalmente inexplicável pela ciência contemporânea ao fenômeno
e que se tenha produzido em contexto digno de Deus ou como resposta de Deus à
prece humilde e confiante dos homens. Fora desse contexto religioso não se pode
falar de milagre; haverá então um fenômeno paranormal ou coisa semelhante[2].
Até o século XVI a
possibilidade do milagre não importava em muitas contestações. Na esteira do
racionalismo que se seguiu, contudo, este senso tornou-se cada vez mais
confrontado. Baruch Spinoza, Voltaire, David Hume, Pierre Bayle, entre outras
estrelas do racionalismo, debruçaram-se sobre a questão. Negar a existência do milagre parece conditio sine qua non para um indivíduo
ser considerado uma pessoa de espírito racional. E assume-se, preconcebidamente,
que os estatutos da fé e da ciência são fadados a serem inconciliáveis por toda
a eternidade.
Tal questão foi
objeto de uma encíclica do Papa João Paulo II, que já no preâmbulo afirmava:
A fé e a razão
constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a
contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de
conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que,
conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio[3].
A Igreja, em
verdade, é extremamente rigorosa - extremamente “racional”, se quisermos -
quando na apreciação de um fenômeno que possa vir a ser considerado um milagre.
É tão criteriosa e rigorosa que, para ter-se uma ideia, em Lourdes, o santuário
mariano mais frequentado - para onde afluem milhões de pessoas todos os anos em
busca de milagres -, desde 1858 até
hoje, somente 65 curas inexplicáveis e milagrosas foram reconhecidas pelas
autoridades eclesiásticas[4].
É de surpreender,
portanto, se pensarmos nos 65 casos de Lourdes, que no livro do Postulador da
Causa dos Santos, Ernesto Piacentini, analisando a tipologia dos milagres
atribuídos à intercessão de Santa Rosa, elenca mais de mil[5],
assim distribuídos:
Milagres em vida
(1233-1251): 12
Milagre em morte
(6-3-1251): 1
Milagres antigos
(1251-1404); 21
Milagres modernos
(1406-1457): 169
Milagres recentes
(1458-1738): 290
Milagres de Fabriano[6]
(1738-1740): 43
Milagres de 1748 a
1918: 29
Milagres de 1918 a
1990: 15
Milagres nos
ex-votos:
A – pinturas em tela: 29
B – corações de prata: 502
C – outros objetos: 60
Total: 1171
Evidentemente, isto
não significa que todos foram chancelados pelas autoridades eclesiásticas, ou
que sequer foram submetidos a análises por estas autoridades. Mas, o número
impressiona, mesmo assim, principalmente considerando-se os ex-votos que são
testemunhos de graças alcançadas. Mas significa, certamente, o quanto Rosa é
amada, e o tanto que é depositado de confiança e esperança na sua poderosa
intercessão junto a Deus.
Mas, o que parece
fundamental no que diz respeito aos milagres é o próprio posicionamento do
fiel, do cristão em relação a eles. Quanto a isto é elucidadora a digressão do
já citado Dom Estêvão Bettencourt respondendo a pergunta: ”Crer por causa dos
milagres ou apesar dos milagres?”. Vale
a pena lê-la na íntegra:
Há católicos que se sentem embaraçados pela
apresentação de milagres e afirmam crer não por causa dos milagres, mas apesar
dos milagres.
A propósito, deve-se afirmar que o cristão não
crê em Cristo e na Igreja por causa dos milagres. Não há razões humanas cuja
evidência obrigue o homem a crer; a fé será sempre uma adesão à Palavra de Deus
no claro-escuro ou na penumbra. É a resposta a Deus que chama a atenção e
atrai, mas deixa a liberdade ao homem para que diga Sim ou Não ao Senhor.
Deve-se, porém, dizer que, se a fé é um ato da
inteligência humana que responde à Verdade de Deus, ela não é um ato cego, mas
um ato baseado sobre credenciais. Por isso, à atração interior de Deus que
chama, se associam motivos extrínsecos ou critérios racionais que evidenciam a
credibilidade ([1]) da Palavra de Deus; entre esses critérios extrínsecos e
racionais estão os milagres. Estes são fatos experimentais, que a inteligência
humana examina com todo o seu acume; quando ela verifica que são sinais de Deus
inexplicáveis pelas forças da natureza, a inteligência humana os assume como
credenciais das verdades da fé. Diz o Concilio do Vaticano I:
"A fim de que o obséquio da nossa fé seja
consentâneo com a nossa razão, quis Deus que, com os subsídios interiores
ministrados pelo Espírito Santo, fossem dadas provas exteriores da Revelação,
isto é, fatos divinos, em primeiro lugar os milagres e as profecias, que são
certíssimos sinais da revelação divina" (Constituição Dei Filius, de
24/04/1870).
Por conseguinte, o cristão não crê por causa
dos milagres, mas é ajudado por estes, visto que os milagres tornam razoável o
ato de fé e assim também o tornam mais fácil.
Como sinal de Deus, o milagre é uma ajuda ao
ato de fé..., ajuda em duplo sentido: 1) para o homem indiferente e distante de
Deus, pode ser uma "sacudidela", um empurrão que o leve a colocar o
problema de Deus, da religião e da fé, pois lhe abre perspectivas que fogem à
rotina dos acontecimentos; 2) para a pessoa que já crê, o milagre pode ser um
apoio em suas dúvidas e tentações. Particularmente em nossos dias, quando a fé
é atacada de vários modos e o cristão ressente os embates respectivos, o
milagre é um sinal de que Deus está presente à história dos homens; o milagre é
uma entrada de Deus no cotidiano dos homens, que lhes chama a atenção e aviva a
convicção de que o amor de Deus não esquece os homens mesmo nos momentos de
mais intenso silêncio[7].
Enfim, poderíamos
afirmar juntamente com um respeitado e polêmico teólogo moderno:
Os milagres não são,
de forma alguma, algo secundário no cristianismo. E o futuro do cristianismo
talvez dependa até da possibilidade de sermos capazes de redescobrir o encanto
dessas provas perceptíveis do amor divino[8].
Ou talvez fosse mais
aconselhado simplesmente meditar as palavras contidas no evangelho do discípulo
amado:
Jesus, pois, operou
também em presença de seus discípulos muitos outros sinais, que não estão
escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é
o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome. (João 20: 30,31)
E crer, acima de tudo crer, pois, Ele
nos disse que, na verdade:
aquele que crê em mim também fará as obras que eu faço, e
fará ainda maiores (João 14: 12).
[2] Idem
[4] BETTENCOURT, Pergunte e
Responderemos, N. 391, 1994
[5] PIACENTINI, 1991, pg 274
[6] Este milagres, 43
precisamente, ditos “di Fabriano” são reportados em um manuscrito notarial
escrito em Fabriano - comuna italiana da Província
de Ancona –
entre os anos 1738 e 1740, pelo notário Giovanni Francesco Frattini, que depois
remeteu-o para Viterbo e é conservado no Archivio del Monastero di Santa Rosa. (PIACENTINI,
op.cit., pg 157)
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