5.2 - O
Coração nas Sagradas Escrituras
Deus
purifica o coração (Sl 25, 2); o coração confia no Senhor (Prov 3,5); o coração
agradece (Sl 28, 7); o coração fala do Senhor (Sl 27, 8)... Jesus é manso e humilde de coração[1]!
A
palavra “coração” aparece em cerca de um milhar de passagens nas Sagradas
Escrituras, nos informa um respeitado dicionário bíblico[2].
E é fato. Contudo, como tudo que diz respeito à linguagem é preciso ter cuidado
ao perscrutá-la, pois, as ressonâncias que esta palavra evoca no hebraico – ou
nos contextos do Antigo e do Novo Testamento, melhor dizendo - não são as
mesmas que em nossa língua.
Além
de órgão humano ou animal, o coração é visto como sede do homem interior (1Pd
3,4), conhecido por Deus (1Sm 16,7). É a sede da vida intelectiva, dos
pensamentos (Dn 2,30), da fé e da dúvida (Mc 11,23; Rm 10,8s), enfim dos
sentimentos e das paixões em geral (Dt 15,10; 20,3; 28,47; Rm 1,24). O coração
é ainda a sede da vontade, da vida moral e religiosa (Lc 21,14; 2Cor 9,7; Gl
4,6). Por isso o coração representa o homem todo (Jl 2,13)[3].
“Coração”[4] (no hebraico lêb, e sua variante lêbâb[5]), muitas vezes é usado em um sentido que não tem nas línguas europeias. Confunde-se algumas vezes perfeitamente com a alma vegetativa, nephesh, e outras vezes com o espírito, rûah. Comumente se refere à alma, em geral, ou com suas funções fisiológicas, suas faculdades espirituais, ou, finalmente, com a vida moral. Por analogia, a Sagrada Escritura fala, também, do coração de Deus. Vejamos algumas passagens e sentidos[6]:
I - O Coração, princípio da vida corporal — O coração é um órgão essencial à vida; nós procuramos ferí-lo quando queremos matar certemente a alguém (2 Sm 18,14; 2 Rs 9,24). Se o coração está em boas condições é saudável para todo o corpo (Pr 14,30). Como rege as funções vegetativas, é dito que ele está satisfeito e reforçado quando o homem se alimenta (Gen 18,5; At 14, 17). O cheiro do perfume o deixa feliz (Pr 27,9); mas é especialmente o vinho que lhe causa sensações agradáveis (Sl 104, 15; Eclo 40,20; Zc 10,7); às vezes, seu abuso é condenado (Os 4,11; Eclo 31, 25-31).
II - O Coração, centro das faculdades espirituais: Enquanto que em nossa língua o coração é sede dos sentimentos e do amor, nas Sagradas Escrituras o coração é:
1.
A sede do pensamento, da reflexão e da meditação: É o coração que pensa (Eclo 17,6); que
conhece (Jr 24,7); que medita (Sl 19,15); que reflete (Jr 12,11); que fala
consigo mesmo (Gen 17,17; Sl 4,4). Os pensamentos surgem no coração (1 Cor 2,
9; Lc 24,38) ou saem do coração (Jr 3,
16). Para aplicar o espírito em alguma coisa nós a colocamos no coração (1 Reis
8,18; Lc 21,14); nós aplicamos no coração (Jr 30,24; Dn 10,12). Como a verdade
é a luz da inteligência, as metáforas extraídas da visão física são aplicadas
ao coração. O coração recebe luz da verdade divina (2 Pd 1,19), ele tem os
olhos que ilumina a verdade (Ef 1,18). Mas ele pode ser deformado (2 Cor 3,15),
ou mesmo totalmente cego, isto é, ignorante e incrédulo (Is 6,10; Mc 3,5; Rm 1,21). O coração está
aberto à lei quando ele a conhece (2 Mc 1,4;
Sl 118, 32). Parece uma terra em que a palavra de Deus é semeada (Mt
13,19), um tesouro que fornece os pensamentos e palavras à boca (Mt 12,34-35;
Lc 6,45). É, também, o coração que crê (Rm 10,10). Um coração largo significa
uma grande inteligência e a pequenez do coração caracteriza a tolice. O coração
do tolo parece um vaso rachado que deixa tudo escapar (Eclo 21,17), à cinza que
não é bom para nada (Sb 15,10). A palavra manifesta o pensamento, assim, no
sábio, é o coração que fala, e no tolo, é a boca que pensa (Eclo 21,29). O coração fica doente devido ao pecado
original, concebe, naturalmente, maus pensamentos (Gn 6,5).
Em
tudo é enganador o coração, e isto é incurável; quem poderá conhecê-lo? Eu sou
o Senhor, que perscruto o coração e provo os sentimentos, que dou a cada qual
conforme o seu proceder e conforme o fruto de suas obras (Jr 17,9-10).
2.
2° A sede da sabedoria, que é um dom de
Deus à inteligência. É no coração dos homens que Deus coloca a sabedoria e a
habilidade necessária para fabricar os objetos de culto no deserto (Ex 35,35).
O dom da sabedoria é concedido ao coração de Salomão (1 Rs 3,12), e aos justos
(Pr 2,10; 16,21).
3. 3° A sede da memória, que mantém aquilo que
a inteligência aprendeu (Dt 4,9; 8,5; Pr 4,21; Is 51,7). As coisas são
inscritas no coração como nas tabuletas (Pr 3,3). Para revelar um segredo nós
abrimos o coração.
4. 4° A sede da vontade. O coração leva a
agir, é o princípio da ação (Pr 16, 9; Eclo 2,20); nós executamos o que está no
coração (1 Sm 14, 7). Querer é doar o coração à ação (Is 10,7). Possuir seu
coração é ser o mestre de sua vontade (Pr 16,1). O sábio mantém seu coração na
mão direita, o tolo na mão esquerda (Ecl 10,2), isto é, um tem uma vontade
enérgica e o outro uma vontade débil. Agir de grande coração (2 Mc 1,3), é implementar todo o poder da sua vontade, e
elevar o coração (Lm 3,41), é dirigir a Deus uma prece. Como a vontade é livre,
ele pode resistir às influências externas, e particularmente às ordens de Deus.
Dizemos que o coração é duro, ou que endurece: esta expressão é corrente nas
Sagradas Escrituras. A dureza do coração é comparada à dureza de uma pedra (Jó
41,16), e mesmo àquela do diamante (Zc 7,12). Quando o coração amolece, a
vontade torna-se mais dócil, ou mesmo enfraquece (Jr 51,46). A mudança do
coração de pedra ao coração de carne (Ez 36,26), marca a passagem da revolta à
obediência.
5. 5° A sede das disposições da alma. — Estas
disposições são boas ou más. Entre as boas intenções do coração, os autores
sagrados elencam: a justiça (Dt 9,5); a simplicidade (1 R 9,4); a docilidade (
1 R2 3,9); a humildade (Sl 131,1). O
coração é perfeito quando é fiel a Deus (1 Rs 11,4; 15,14). A expressão « ter
um só coração » marca a união estreita que reina entre os membros de uma mesma
sociedade (II Par., xxx, 12; Jr 32,39; At 4,32). O coração também tem suas
falhas: ele é vão, i. e., sem fundamento (Sl 5,10); leviano (Eclo 19,4);
presunçoso ( Pr 28,26); pesado, que dizer, preso às coisas terrenas (Sl 4,3); é
como a gordura (Sl 119,70), i. e., estúpido e grosseiro. O coração dúbio é o
coração hipócrita e inconstante (Eclo 1,36), aquele no qual não podemos
confiar, e que leva a lugar nenhum porque anda em dois caminhos
simultaneamente. Quando se inclina ou se volta o coração para alguém, nós
ficamos do seu lado (Jz 9,3).
6. 6° A sede das paixôes e dos sentimentos. —
Do coração se originam o orgulho (Ez 28,2; Lc 1,51); a inveja que engendra a
discórdia (Jacob., iii, 14); a avareza (Ez 33,31; 2 Pd 2,14); o ódio (Lv
19,17), que rasga o coração (At 7,54), e
o amor (Sl 67,26; Ct4,9; Mt 6,21); o medo, que perturba e dissolve o coração
(Lv 26,36; Jr 4,19), e a coragem que vai até a ousadia e que dá ao homem um «
coração de leão » (2 Sm 17,10); a tristeza que abate (At 21,13); a dor que
perturba o coração (Sl 108,22), que o mói (Sl 50,19; Jr 23,9), o consome (Sl 38,4), o derrete e mata (1 Sm 25,37), e a
alegria o faz reviver ( Ex 4,14; Is 65,14).
Assim, nas Sagradas Escrituras, o coração é como:
... o centro do homem inteiro, o princípio interno, ao mesmo tempo espiritual e vital, que faz a unidade concreta do homem ou de onde parte sua atividade dinâmica e sua determinação moral. Tudo o que os gregos, ou os helenistas, chamam “espírito”, “razão”, “consciência” [(νους), (λόγος), (συνείδησης)] está envolvido em καρδιά (coração) e todos os afetos do corpo e da alma partem do coração (lêb) para ser conhecido claramente. Todos os raios da vida da alma e do corpo convergem para lá, e novamente desenvolvem-se dali[7].
III - O coração, centro da vida moral. — Se a inteligência e a vontate têm suas sedes, por assim dizer, seus princípios no coração, é o coração que é o responsável pela ação. Os Livros Sagrados consideram ainda o coração sob este ponto de vista.
1°
O coração, sede dos desejos. — O
coração deseja o que é bom e permitido (Sl 15,5), mas também, sob a influência
da concupiscência natural, ele deseja o mal (Pr 6,25; Mt 5,28; 15,18). O coração que se abandona aos desejos maus é
chamado « incircunciso » (Jr 4,4; At 7,51).- A circuncisão do coração, isto é,
a luta contra a concupiscência é um dever imposto ao cristão (Rm 2,29).
2°
O coração, sede da consciência. — O
coração tem conhecimento do mal que reside nele e ele retorna o culpado (1 Jo
3,20). Ele retorna ao seu coração, ou seja, retorna a si mesmo e toca o coração
como um sinal de arrependimento (1 Sm 24,6). Ele deve ser renovado com a ajuda
da graça divina (Ez 18,31), e torna-lo puro para agradar a Deus (Mt 5,8). A
alegria da consciência é a consequência desta pureza (Eclo 30,16). No entanto,
ninguém pode garantir que ele tenha a perfeita pureza (Pr 20,9).
3°
Os deveres a cumprir « de todo seu
coração ». — Esta expressão « de todo seu coração » é recorrente nas
Sagradas Escrituras. Este modo de falar significa que devemos aplicar na
realização destes atos todas as faculdades da alma incluídas na palavra
"coração", portanto: inteligência, reflexão, vontade, paixão e
consciência moral.
Ouve,
ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iaweh! Portanto, amarás a Iahweh teu Deus
com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. (Dt 6,5)
Amarás
o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu
entendimento. (Mt 22,
37)
Por analogia, as Sagradas Escrituras atribuem ao próprio Deus um coração (Gn 6,6). Nosso Senhor se apresenta a nós como « humilde de coração » (Mt 11,29). Não há nenhuma razão para dar à palavra "coração" nesta passagem, um significado mais estreito do que no resto da Escritura. A humildade do coração de Jesus Cristo, portanto, refere-se tanto aos seus pensamentos, à sua vontade, às suas afeições, em uma palavra, a todos os atos de sua alma[8].
Talvez seja por tudo isto que Karl Rahner[9], ao enunciar algumas teses sobre o culto ao Sagrado Coração de Jesus, tenha dito que “coração” é uma “protopalavra” (Urworte), pertence ao patrimônio fundamental da linguagem humana e pretende dizer um mistério inefável. “Só o amante pode dizer com sentido a palavra “coração””, dizia ele, e “só quem está amorosamente unido ao Senhor crucificado, sabe o que quer dizer “Coração de Jesus””.
Há palavras que
dividem e palavras que unem. Coração seria, portanto, uma palavra que une e nos
faz sábios, que nos esclarece em lugar de nós a ela. Ela não nasceu da
experiência do anatomista, senão da experiência do homem. Pertence ao tesouro
primitivo da linguagem humana. Pertence às palavras que o homem enuncia,
sabedor de si mesmo, o mistério de sua existência. Quando o homem diz que tem
um coração, e compreende, realmente, o que significa tal palavra, diz a si
mesmo um dos mistérios decisivos de sua existência, captando seu centro
original enquanto unidade e totalidade.
E, assim sendo, tal palavra é, definitivamente, insubstituível, e mais,
é realizável sempre que pronunciada[10].
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[1] Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde
de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. (Mateus 11,29)
[2] VIGOUROUX, 1912, pg 823.
[3] LÉON-DUFOUR, 1992, pg
174
[4] Este capítulo - um pouco
longo, e recheado de citações bíblicas - pode parecer uma excentricidade dentro
desta peguena biografia de Santa Rosa. No entanto, talvez seja o que há de mais
essencial. Ele quer evocar o quanto simbólico é a preservação milagrosa do
coração (físico) desta santinha, e para isto é preciso entender “coração” nas
Sagradas Escrituras. Serve, por outro lado, aos que tiverem interesse em
aprofundar o estudo sobre esta palavra tão rica de significados, dentro e fora
das Sagradas Escrituras. Nas citações do Antigo e Novo Testamento é utilizada
como referência a Bíblia de Jerusalém (Edições Paulinas, 1993). E, basicamente,
são utilizados os dicionários de VIGOUROUX (1912, tradução nossa) e LÉON-DEFOUR
(1992).
[5] Considerado sobre alguns pontos de vista
particulares, o coração às vezes tem outros nomes em hebraico. Exemplos: Kâbôd "glória", como a
parte mais nobre do homem: Ps (hebraico) XVI, 9;. XXX, 13; LVII, 9; CVIII, 2; mê'im, "entranhas", como a parte
mais íntima, Job XXX, 27; Lam, I, 20. Cant, v, 4.; Is XVI, 11. Ps XL (hebraico), 9; qéréb "interior", Ps (hebraico), v,
10. XLIX, 12; LXIV, 7; héléb,
"gordura" para descrever o coração pesado (“gorduroso”), sem
inteligência. Ps. (hebraico) XVII, 10. Essas quatro palavras são raramente
usadas, e somente em textos poéticos. (VIGOUROUX, op. cit., pg
823). Tradução nossa.
[6] VIGOUROUX, op. cit., pg
823 e seguintes.
[7] DELITZSCH, 1867, pg.
296.
[8] VIGOUROUX, op. cit., pg
826.
[9] RAHNER, 1961, pg 357 e
seguintes.
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