5.3 –
Deus, Rico em Misericórdia
Falamos de milagres, falamos do coração, e, não poderíamos
deixar de falar do que é essencial e a razão deste livro: a Misericórdia, esta palavrinha que tanto
usamos, cotidianamente - até em expressões inconsequentes -, que repetimos no
correr das orações, particularmente nas ladainhas, e que tanto pedimos que Deus
a tenha por nós, sem nem perceber, às vezes, tem sua raiz no “coração”. De fato, “misericórdia” origina-se do latim,
compreendendo “miseratio” (derivado de “miserere”, que significa “compaixão”) e
“cordis” (derivado de “cor”, “coração”): “compaixão no coração”. No caso,
quando nos dirigimos a Deus nas nossas orações – ladainhas, louvores, etc -,
pedimos que Deus tenha por nós, pecadores, “compaixão em seu coração”[1].
Precisamos sempre de contemplar o mistério
da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade e paz. É condição da nossa
salvação. Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima
Trindade. Misericórdia: é o acto último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso
encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa,
quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida.
Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à
esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado[2].
O milagre provém da misericórdia de Deus[3], ou seja, ele nasce no coração de Deus. Misericórdia esta que, nas palavras do Magnificat (Lc 1,46-55), se estende de geração em geração.
« A mentalidade contemporânea, talvez mais que a do homem do passado,
parece opor-se ao Deus de misericórdia e, além disso, tende a separar da vida e
a tirar do coração humano a própria ideia da misericórdia. A palavra e o
conceito de misericórdia parecem causar mal-estar ao homem, o qual, graças ao
enorme desenvolvimento da ciência e da técnica nunca antes verificado na
história, se tornou senhor da terra, a subjugou e a dominou (cf. Gn 1, 28). Um
tal domínio sobre a terra, entendido por vezes unilateral e superficialmente,
parece não deixar espaço para a misericórdia. (...) Por esse motivo, na
hodierna situação da Igreja e do mundo, muitos homens e muitos ambientes
guiados por um vivo sentido de fé, voltam-se quase espontaneamente, por assim
dizer, para a misericórdia de Deus[4] ». Onde houver cristãos –, qualquer pessoa
deve poder encontrar um oásis de misericórdia[5].
De tudo isto se deduz que a misericórdia
faz parte não somente da noção de Deus, mas caracteriza também a vida de todo o
povo de Israel e de cada um dos seus filhos e filhas: é a essência da
intimidade com o seu Senhor, a essência do seu diálogo com Ele. Precisamente
sob este aspecto, a misericórdia é apresentada em cada um dos Livros do Antigo
Testamento com grande riqueza de expressões. Seria difícil, talvez, procurar
nestes livros resposta meramente teórica à pergunta: o que é a misericórdia em
si mesma. Contudo, a própria terminologia que neles é usada pode dizer-nos
muitíssimo a tal respeito [52].
52 Ao definirem a misericórdia, os Livros
do Antigo Testamento servem-se sobretudo de duas expressões, cada uma das quais
tem um matiz semântico diverso. Antes de mais, o termo hesed, que indica uma
profunda atitude de «bondade». Quando esta disposição se estabelece entre duas
pessoas, estas passam a ser, não apenas benévolas uma para com a outra, mas
também reciprocamente fiéis por força de um compromisso interior, portanto ,
também em virtude de uma fidelidade para consigo próprias. E se é certo que
hesed significa também «graça» ou «amor», isto sucede precisamente na base de
tal fidelidade. O facto de o compromisso em questão ter um carácter, não apenas
moral, mas como que jurídico, não altera a sua realidade. Quando no Antigo
Testamento o vocábulo hesed é referido ao Senhor isso acontece sempre em relação
com a aliança que Deus fez com Israel. Esta aliança foi da parte de Deus um dom
e uma graça para Israel. Contudo, uma vez que Deus, em coerência com a Aliança
estabelecida, se tinha comprometido a respeitá-la, hesed adquiria, em certo
sentido, um conteúdo legal. O compromisso «jurídico» da parte de Deus deixava
de obrigar quando Israel infringia a aliança e não respeitava as condições da
mesma. E era precisamente então que hesed, deixando de ser uma obrigação
jurídica, revelava o seu aspecto mais profundo: tornava-se manifesto aquilo que
fora ao princípio, ou seja, amor que doa, amor mais potente do que a traição,
graça mais forte do que o pecado.
Esta fidelidade para a «filha do meu povo»
infiel (cf. Lam 4,3.6), em última análise é, da parte de Deus, fidelidade a si
próprio. Isto aparece evidente sobretudo pela frequência com que é usado o
binómio hesed we'emet (= graça e fidelidade), que se poderia considerar uma
endíades (cf. p. ex., Ex 34,6; 2 Sam 2,6; 15,20; Sl 25[24],10; 40[39], 11 s.;
85[84],11; 138[137],2; Miq 7,20). «Eu faço isto, não por causa de vós, ó casa
de Israel, mas pela honra do meu santo nome» (Ez 36,22). Assim, também Israel,
embora sob o peso das culpas, por ter quebrado a aliança, não pode ter
pretensões em relação ao hesed de Deus, com base numa suposta justiça (legal).
No entanto, pode e deve continuar a esperar e a ter confiança em obtê-lo, já
que o Deus da aliança é realmente «responsável pelo seu amor». Fruto deste amor
é o perdão e a reconstituição na graça, o restabelecimento da aliança interior.
O segundo vocábulo que na terminologia do
Antigo Testamento serve para definir a misericórdia é rahªmim. O matiz do seu
significado é um pouco diverso do significado de hesed. Enquanto hesed acentua
as características da fidelidade para consigo mesmo e da «responsabilidade pelo
próprio amor» (que são características em certo sentido masculinas), rahªmim,
já pela própria raiz, denota o amor da mãe (rehem= seio materno). Do vínculo
mais profundo e originário, ou melhor, da unidade que liga a mãe ao filho,
brota uma particular relação com ele, um amor particular. Deste amor se pode
dizer que é totalmente gratuito, não fruto de merecimento, e que, sob este
aspecto, constitui uma necessidade interior: é uma exigência do coração. É uma
variante como que «feminina» da fidelidade masculina para consigo próprio,
expressa pelo hesed. Sobre este fundo psicológico, rahªmim dá origem a uma gama
de sentimentos, entre os quais a bondade e a ternura, a paciência e a
compreensão, que o mesmo é dizer a prontidão para perdoar.
O Antigo Testamento atribui ao Senhor estas
características quando, ao falar d'Ele, usa o termo rahªmim. Lemos em Isaías:
«Pode porventura a mulher esquecer-se do seu filho e não ter carinho para com o
fruto das suas entranhas? Pois ainda que a mulher se esquecesse do próprio
filho, eu jarnais me esqueceria de ti» (Is 49,15). Este amor, fiel e invencível
graças à força misteriosa, da maternidade, é expresso nos textos do Antigo
Testamento de várias maneiras: como salvação dos perigos, especialmente dos
inimigos, como perdão dos pecados — em relação aos indivíduos e também a todo o
povo de Israel— e, finalmente, como prontidão em satisfazer a promessa e a
esperança (escatológicas), não obstante a infidelidade humana, conforme lemos
em Oséias: «Eu os curarei das suas infidelidades, amá-los-ei de todo o coração»
(Os 14,5).
Na terminologia do Antigo Testamento
encontramos ainda outras expressões, que se referem de modo diverso ao mesmo
conteúdo fundamental. Todavia, as duas acima mencionadas merecem uma atenção
particular. Nelas se manifesta claramente o seu originário aspecto
antropomórfico: para indicar a misericórdia divina, os autores bíblicos
servem-se dos termos que correspondem à consciência e à experiência dos homens
seus contemporâneos. A terminologia grega da versão dos Setenta apresenta-se
com uma riqueza menor do que a hebraica; não reflecte todos os cambiantes
semânticos próprios do texto original. Em todo o caso, o Novo Testamento
constrói sobre a riqueza e a profundidade que já caracterizavam o Antigo.
Deste modo, herdamos do Antigo Testamento —
como que numa síntese especial — não apenas a riqueza das expressões usadas por
aqueles Livros para definir a misericórdia divina, mas também uma específica,
obviamente antropomórfica, «psicologia» de Deus: a impressionante imagem do seu
amor que, em contacto com o mal e, em particular, com o pecado do homem e do
povo, se manifesta como misericórdia. Esta imagem é composta, mais do que pelo
conteudo, bastante genérico aliás, do verbo hãnan, sobretudo pelo conteúdo de
hesed e de rahªmim O termo hãnan, exprime um conceito mais amplo: significa a
manifestação da graça que comporta, por assim dizer, uma constante
predisposição magnânima, benévola e clemente.
Além destes elementos semânticos
fundamentais, o conceito de misericórdia no Antigo Testamento inclui também o
conteúdo do verbo hãmal, que literalmente significa «poupar (o inimigo
derrotado)», mas também significa «manifestar piedade e compaixão» e, por
conseguinte, perdão e remissão da culpa. O termo hus exprime igualmente piedade
e compaixão, mas isso sobretudo em sentido afectivo. Estes termos aparecem nos
textos bíblicos com menor frequência para indicar a misericórdia. É oportuno
ainda lembrar o já citado vocábulo 'emet, que significa: em primeiro lugar
«solidez, segurança» (no grego dos Setenta, «verdade»); e depois, também
«fidelidade»; e desta maneira parece relacionar-se com o conteúdo semântico
próprio do termo hesed.
O Papa Francisco e São João
Paulo II, nos documentos referidos, demonstram que têm a mesma concepção da
Igreja, e não por acaso, refletem sobre a misericórdia de Deus, e clamam e
exortam “a uma só voz”. O primeiro, além ..., o segundo, afirma:
Em última análise, não é acaso esta a
posição que toma Cristo em relação ao homem quando diz: «Sempre que fizestes
isto a um destes meus irmãos... foi a mim que o fizestes»? (Mt 25,40) As
palavras do Sermão da Montanha — «Bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia» (Mt 5,7) — não constituem, em certo sentido, uma
síntese de toda a Boa-Nova, de todo o «admirável intercâmbio» (admirabile
commercium) nela contido, que é uma lei simples, forte e ao mesmo tempo
«suave», da própria economia da Salvação? Estas palavras do Sermão da Montanha
, mostrando desde o ponto de partida as possibilidades do «coração humano»
(«ser misericordiosos»), não revelarão talvez, na mesma perspectiva, a
profundidade do mistério de Deus: isto é, aquela imperscrutável unidade do Pai,
do Filho e do Espírito Santo, em que o amor, contendo a justiça, dá origem à
misericórdia, a qual, por sua vez, revela a perfeição da justiça?[6]
Um bom educador vai ao essencial. Não se
perde nos pormenores, mas quer transmitir o que deveras conta para que o filho
ou o aluno encontre o sentido e a alegria de viver. É a verdade. E o essencial,
segundo o Evangelho, é a misericórdia. O essencial do Evangelho é a
misericórdia. Deus enviou o seu Filho, Deus fez-se homem para nos salvar, ou
seja, para nos dar a sua misericórdia. Jesus diz isto claramente, resumindo o
seu ensinamento para os discípulos: «Sede misericordiosos, como o vosso Pai é
misericordioso» (Lc 6, 36). Pode existir um cristão que não seja
misericordioso? Não. O cristão deve ser necessariamente misericordioso, porque
este é o centro do Evangelho. E fiel a este ensinamento, a Igreja não pode
deixar de repetir a mesma coisa aos seus filhos: «Sede misericordiosos», como o
vosso Pai, e como o foi Jesus. Misericórdia.[7]
[2]
Papa Francisdo, Misericordiae Vultus, BULA DE PROCLAMAÇÃO
DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA.
4 - Bula
Misericordiae Vultus - http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html
5 – Homilia do Jubileu da Divina Misericórdia - http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2016/documents/papa-francesco_20160403_omelia-giubileo-divina-misericordia.html
Homilia da Abertura do Ano da Misericórdia - http://papa.cancaonova.com/homilia-do-papa-na-abertura-do-ano-da-misericordia-081215/
O Lutador – O Evangelho se escreve com a misericórdia.
Dives in
Misericordia http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30111980_dives-in-misericordia.html#-1
João Paulo II, 30 de novembro de 1980.
[4] Dives in Misericordia, São João Paulo II
[5]
Misericordiae Vultus.
[6]
Dives in Misericordia, 8.
[7]
Papa Francisco. Audiência Geral, Quarta-feira, 10 de Setembro de 2014. In, https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/audiences/2014/documents/papa-francesco_20140910_udienza-generale.html
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